quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

O Boêmio - Crônica de Geraldo Generoso


O bar ainda está aberto, com suas portas escancaradas para a madrugada. Não há mais ninguém nas ruas, feitas de cidade pequena, que folga seu aconchego na noite deserta, isenta de humanos passos. Só o boteco ali na esquina insiste em ser uma ilha povoada em meio ao arquipélago de casas dormentes. Ali, um pequeno número de fregueses, entre os mais insistentes a enfrentar o sono ou fugir da solidão, ele resiste em molhar as palavras com o amargor gostoso e suave da cerveja preferida. Nessas horas o boêmio se esquece dos próprios pensamentos. Não pensa nada. Apenas ouve e responde conversas que os seus iguais jogam por sobre as mesas. Ali se posta sob aquele teto amigo, que o recobre para os tantos compromissos e rituais que a vida tem no seu dia a dia. É ali, sob o reinado do barman e no convívio com seus iguais, que ele se encontra consigo mesmo. É nesses momentos que o boêmio encara os seus fantasmas de medo, apreensão e incerteza, afogando-os doses sobre doses. Descobre-se mais forte ante os espantalhos que o afligiram no dia que já se foi. A procissão das horas de tantas outras vidas termina sobre o leito. Os dramas de um sem-número de pessoas encontram-se em intervalo, na trégua que o repouso proporciona como um anestésico eficaz. Quanto ao boêmio, está quase a dormir. Quase a apagar-se com as luzes de quase todos os retângulos das janelas sonolentas. Vão-se os últimos fregueses após inúmeras saideiras. O taberneiro também tem sono. É de carne e osso e nada mais que um voyer das bebedices. Acaricia o guardanapo sobre os ombros. Pergunta se o último freguês quer algo mais. Este, entendendo a mensagem, apenas diz: “Boa Noite, Seu Ramiro. Até amanhã”... À saída, sente fechar a porta daquele mundo atrás de si, que agora há pouco lhe soava como o melhor lugar do mundo. Numa marcha indiferente, desprezando a linha reta do caminho, a custo chega à porta da casa aonde mora. Amanhã será outro dia. Trará outra noite. O pior será apenas voltar para casa e desperdiçar os restos de pedaços de noite fundidos com a madrugada.

Crônica do escritor e Jornalista - Geraldo Generoso - Ipaussu - SP

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